domingo, 10 de maio de 2015

Intervenção de SACHA


Intervenção de Sacha na Audição Pública "Pessoas trans e intersexo: que reconhecimento e que novos direitos?"

Boa tarde. Sou o Sacha, trans de 29 anos e Francês. Estou consciente que a lei que está discutida aqui provavelmente não mudará qualquer coisa para mim, mas quero falar porque sei que muitas pessoas trans portuguesas encontram-se numa situação parecida com a minha. Aliás, algumas dessas pessoas estão aqui agora, mas não terão a liberdade de falar de tudo o que queriam por causa da presença de médicos que têm um enorme poder sobre as suas vidas, podendo recusar diagnósticos, receitas ou cirurgias na base de preconceitos.
Tenho uma identidade de gênero não-binária, ou seja genderqueer, nem homem, nem mulher, mas sim bastante masculino. Não preciso de uma avaliação psicológica para saber quem sou, aliás sou o único especialista da minha identidade. Mas a falta de reconhecimento dessa minha identidade pelas autoridades administrativas e médicas trava a minha transição assim como o resto da minha vida. Porque já recuso usar o meu nome de nascença e porque o meu verdadeiro nome, Sacha, não aparece nos meus papéis de identificação, estou proibido de obter um número de contribuinte que me abriria acesso ao trabalho, à habitação e à saúde aqui em Portugal. Essa situação de clandestinidade, que partilho com imensas pessoas trans, faz com que a minha vida esteja bloqueada. Vivemos assim numa grande precariedade institucional, social e económica.
Em relação ao percurso de transição médico, eu recuso submeter-me ao poder de auto-proclamados especialistas que procurarão avaliar o meu « transexualismo » e decidir o melhor « tratamento » para mim. Identifico-me como trans e quero decidir eu próprio o que preciso para ser feliz. As pessoas trans que escolhem passar por um percurso médico têm que seguir um protocolo que demora meses e anos, bastante caro, e muitas vezes sem a liberdade de escolher os seus tratamentos.
Assim encontro-me numa situação de clandestinidade administrativa e médica. Decidi começar a tomar testosterona em breve, na mesma sem pedir a autorização. Estou consciente que falar dessa decisão pode descridibilizar-me mas espero que possam entender as razões. É importante guardar em mente que muitas pessoas trans que seguem um protocolo não dizem toda a verdade e às vezes mentem aos médicos para obter o que precisam para viver dignamente. Um acesso livre à transição administrativa e médica, na base da auto-determinação e do consentimento informado, é necessário para restabelecer uma relação de confiança entre pessoas trans e médicos, diminuindo a relação de poder e melhorando a possibilidade, por parte do pessoal médico, de cuidar verdadeiramente da saúde das pessoas trans. A despatologização é verdadeiramente a única maneira de melhorar esta lei.
Quero acrescentar que a violência institucional, médica, social e económica que acabo de descrever, que é a consequência da transfobia, leva muitas vezes a situações de stress psicológico, à depressão e ao suicídio. Somos uma comunidade extremamente minoritária em número, mas anormalmente exposta a violências e problemas de saúde. As nossas identidades existem, são válidas e não deviam constituir um problema. O problema é que precisamos estar protegidos dessas violências transfóbicas.
Estou, assim como tantas outras pessoas trans, farto de ser um cidadão de 2a classe e de ver a minha vida bloqueada. É urgente, com uma lei despatologizante, resolver as nossas dificuldades.
 
Obrigado.