Intervenção de Sacha na Audição Pública "Pessoas trans e intersexo: que
reconhecimento e que novos direitos?"
Boa tarde. Sou o
Sacha, trans de 29 anos e Francês. Estou consciente que a lei que
está discutida aqui provavelmente não mudará qualquer coisa para
mim, mas quero falar porque sei que muitas pessoas trans portuguesas
encontram-se numa situação parecida com a minha. Aliás, algumas
dessas pessoas estão aqui agora, mas não terão a liberdade de
falar de tudo o que queriam por causa da presença de médicos que
têm um enorme poder sobre as suas vidas, podendo recusar
diagnósticos, receitas ou cirurgias na base de preconceitos.
Tenho uma
identidade de gênero não-binária, ou seja genderqueer, nem homem,
nem mulher, mas sim bastante masculino. Não preciso de uma avaliação
psicológica para saber quem sou, aliás sou o único especialista da
minha identidade. Mas a falta de reconhecimento dessa minha
identidade pelas autoridades administrativas e médicas trava a minha
transição assim como o resto da minha vida. Porque já recuso usar
o meu nome de nascença e porque o meu verdadeiro nome, Sacha, não
aparece nos meus papéis de identificação, estou proibido de obter um
número de contribuinte que me abriria acesso ao trabalho, à
habitação e à saúde aqui em Portugal. Essa situação de
clandestinidade, que partilho com imensas pessoas trans, faz com que
a minha vida esteja bloqueada. Vivemos assim numa grande precariedade
institucional, social e económica.
Em relação ao
percurso de transição médico, eu recuso submeter-me ao poder de
auto-proclamados especialistas que procurarão avaliar o meu
« transexualismo » e decidir o melhor « tratamento »
para mim. Identifico-me como trans e quero decidir eu próprio o que
preciso para ser feliz. As pessoas trans que escolhem passar por um
percurso médico têm que seguir um protocolo que demora meses e
anos, bastante caro, e muitas vezes sem a liberdade de escolher os
seus tratamentos.
Assim encontro-me
numa situação de clandestinidade administrativa e médica. Decidi
começar a tomar testosterona em breve, na mesma sem pedir a
autorização. Estou consciente que falar dessa decisão pode
descridibilizar-me mas espero que possam entender as razões. É
importante guardar em mente que muitas pessoas trans que seguem um
protocolo não dizem toda a verdade e às vezes mentem aos médicos
para obter o que precisam para viver dignamente. Um acesso livre à
transição administrativa e médica, na base da auto-determinação
e do consentimento informado, é necessário para restabelecer uma
relação de confiança entre pessoas trans e médicos, diminuindo a
relação de poder e melhorando a possibilidade, por parte do pessoal
médico, de cuidar verdadeiramente da saúde das pessoas trans. A
despatologização é verdadeiramente a única maneira de melhorar
esta lei.
Quero acrescentar
que a violência institucional, médica, social e económica que
acabo de descrever, que é a consequência da transfobia, leva muitas
vezes a situações de stress psicológico, à depressão e ao
suicídio. Somos uma comunidade extremamente minoritária em número,
mas anormalmente exposta a violências e problemas de saúde. As
nossas identidades existem, são válidas e não deviam constituir um
problema. O problema é que precisamos estar protegidos dessas
violências transfóbicas.
Estou, assim como
tantas outras pessoas trans, farto de ser um cidadão de 2a classe e
de ver a minha vida bloqueada. É
urgente, com uma lei despatologizante, resolver as nossas
dificuldades.
Obrigado.