Aviso: este texto incluí menções explicitas a suicídio e violação.
O meu nome é David.
Quando
nasci olharam para a minha vagina e disseram 'é menina!'.
Se
tivessem dito 'é menino!' estariam igualmente errados.
O
meu nome é David e o meu género é fluído. Não sou uma mulher.
Não sou um homem. Sou os dois e tudo o que existe fora do binarismo
e maior parte das vezes não sou nada em particular. A designá-lo
hoje, descreveria o meu género como 'pessoa', reservando para mim
apenas o direito de me determinar como bem me apetece a qualquer
momento da minha vida, a qualquer hora do dia.
Não
sou visto como uma pessoa.
Vivo
a minha identidade de género com a plenitude e honestidade que a
minha necessidade de segurança permite, e sei, sentindo-o na pele
todos os dias, que não sou visto, nem tratado, como um igual pela
esmagadora maioria das pessoas.
A
minha expressão de género está intrinsicamente ligada à minha
apresentação, e quem se cruza comigo no dia-a-dia rapidamente
coloca a pessoa que ora tem cabelos longos e vestidos, ora tem cabelo
curto e lábios azuis na caixa de 'bicha'. A percepção que têm de
mim fica lá organizadinha, com todos os preconceitos e desinformação
que 'bicha' carrega.
Ouviu-se
muito aqui hoje e bem, 'não estou doente'. Identidades trans não
são doença. Mas a vossa transfobia põe-nos doentes. A vossa
transfobia ataca a nossa saúde mental diaramente. A vossa transfobia
traumatiza. A vossa transfobia mata.
Se
vivesse, em vez de sobreviver, num mundo livre de transfobia, livre
de machismo, livre de hetero e cisnormatividade, estaria a carregar o
peso de uma vida inteira de sintomas graves de depressão e
ansiedade?
Se
vivesse num mundo que respeita a auto-determinação das pessoas
trans, teria a minha abilidade e capacidades comprometidas devido ao
desgaste que dar um simples passo fora de casa causa?
Se
tivesse crescido num mundo que protege crianças e adolescentes trans
em vez de nos destruir, lutaria diaramente contra tendências
suicidas?
Tal
como sou o único especialista da minha identidade género, sou o
único especialista da minha saúde mental, e tenho a certeza que
não. Num mundo livre de transfobia, livre de machismo, livre de
hetero e cisnormatividade, sei que a minha saúde mental não estaria
neste estado.
Não
é ser trans que me afecta a saúde mental. É a vossa sistemática
desumanização das pessoas trans.
Psicólogos
e psiquiatras vi muitos desde os 16 anos. Não tenho qualquer motivo
para neles confiar. Uma psiquiatra inquiria sobre as minhas
frequentes mudanças de look e patologizava-se. Tomou-as como
sintomas de distúrbio bipolar e foi assim que me diagnosticou e para
isso que me medicou. Com a medicação errada, fez de mim um
morto-vivo. O seu único objectivo era 'normalizar-me'. Realmente não
tinha dores. Não sentia nada, a não ser uma pesada vergonha sem
nome. Abandonar essa 'profissional de saúde' foi dos actos de
auto-cuidado mais radicais e importantes que pratiquei na vida.
Vejo-me
agora noutra luta, desta vez com o sistema judicial. Sobrevivi
recentemente a uma violação das chamadas 'correctivas'. Confiei em
alguém a minha identidade e a minha verdade, e fui violentamente
castigado por ser trans (e bisexual. e bicha). Fui caçado no Lisboa
Pride 2014 em Junho e violado em Setembro. Depois de 6 meses de
terapia, com o prazo para fazer queixa a terminar, fiz os movimentos
para iniciar a minha demanda por justiça. Foi-me pedido que
apontasse tudo, e assim apontei, descrevi absolutamente tudo o que me
conseguia lembrar dos meses de violência emocional que precederam o
episódio de violência sexual e física.
Logo
na primeira frase da queixa leio que conheci o meu abusador 'numa
festa no Terreiro do Paço'. Com essa decisão editorial da minha
advogada percebi que a minha única hipótese, imposta pelo sistema,
e mesmo assim escassa, de ver o meu violador condenado, é fazendo-me
passar por mulher cis hetero. Que foi a 'uma festa no Terreiro do
Paço'. Que nunca lhe contou que tem género fluído nem nunca ouviu
nem presenciou as suas reacções violentas a isso. Se quiser ver o
meu violador condenado por violação, devo fingir ser uma pessoa que
não sou, nunca fui, e nunca serei. Terei que limar partes da minha
identidade, e apagar outras por completo. Terei que me disfarçar
para um grupo de 'especialistas' conservadores decidir em primeiro
lugar se fui de facto violado, e pior do que tudo, se mereci
ser violado.
Sei
que nada disto abona em meu favor num sistema que não quer saber de
violações de pessoas cis, quanto mais violações de pessoas
trans. Sei exactamente o que me está a ser exigido.
E
recuso.
Recuso
categoricamente.
O
choque passou e vou tomar o processo nas minhas mãos. Não tenho
mais medo de contar a minha verdade. Apagar a minha identidade é um
preço que recuso pagar pela condenação do meu violador. Se não
for condenado serei uma estatística. Mas serei uma estátisica
correcta.
Ficará escrito em papelada oficial que David 'alegou' (palavra
horrível) com toda a força do seu coração que foi vítima de um
crime, acima de tudo, transfóbico.
E
é por isto tudo e muito mais que repudio palavras que foram aqui
ditas como 'esta audição dignifica o Bloco de Esquerda'. Não gosto
de salvadores. Nenhuma pessoa cis conhece a minha dor. Não gosto de
aliados, que aliado faz parecer que a nossa libertação passa pelo
vosso apoio. Não estou aqui para dignificar partido nenhum. Estou
aqui por nós, pessoas trans. Estou aqui por mim e por quem amo. Se
alguma coisa houver, será cúmplices. E para ser cúmplice da luta
trans é preciso fazer muito mais do que ler meia-dúzia de artigos
ou tirar mestrado em estudos de género ou pedir muitas desculpas
quando se enganam nos nossos pronomes.
Exigimos
mais.